sexta-feira, março 20, 2009


Crónicas da Liberdade

na avenida da liberdade






É na noite que me sinto livre. Percorrendo as ruas e a avenida perco o olhar nas cores garridas do néon. Em cada anónimo que se cruza comigo adivinho um drama ou um segredo terrível. Também há os que têm histórias felizes. Mas na noite os olhares são todos iguais, por isso parto do princípio que todos comungam os mesmos segredos, os mesmos desejos, as mesmas tragédias.

Uma gaja pede-me lume. Olho para ela. Os lábios pintados, lábios de puta. Para mim, à noite, todas as gajas que comigo se cruzam são putas. Puxo de um velho e engordurado isqueiro e tento aceder aos seus desejos. Uma, duas três vezes dou ao dedo e nada. O cabrão do isqueiro não dá nada. Ela pede o isqueiro. Quer tentar ela. Tudo bem. Dá ao dedo e a chama surge, Acende o cigarro e puxa uma longa e demorada passa. Devolve-me o isqueiro e agradece. Eu tou fodido com o isqueiro. Mas olho para ela sem animosidade. Sorrimos os dois. Entendo de imediato que ambos estamos sós e dispostos a conversar um pouco. Sentamo-nos num velho banco da avenida. A conversa flui em torno do que fazemos. Não dizemos o nome. Isso não é importante. Pergunta que faço ao que respondo, nada. É verdade, não faço nada.
Sou aquilo que toda a gente apelida de parasita. Vivo de noite, e durmo de dia. Não suporto os magotes de gente com cara de sofrimento que a madrugada faz levantar do leito. Eles convencidos de que têm algo para dizer e fazer no mundo. Elas convencidas que o trabalho lhes trouxe mais direitos e as guindou a posições de notoriedade social. Uma merda de vida. Um cinzentismo impressionante. Olhar para esta gente dá-me vómitos. E os jovens? Os jovens numa correria louca através dos corredores de uma qualquer universidade na ânsia de terminar um cursinho qualquer, de forma a ganharem um lugar neste inferno em que transformaram a existência.
Estou implacável, a gaja nem abre a boca, vai fumando o seu cigarro e acenando com a fronha, como se aquilo para ela fosse algo também pensado.
Um velho passa a passear um cão seboso e tão velho quanto ele. Arrastam-se ambos numa caminhada penosa. A gaja sorri para o velho. O infeliz devolve a gentileza e o cão olha-me numa súplica pela morte. Não sei ao certo quem faz um favor a quem. Tenho a sensação de que o cão só vive para dar ao velho o prazer de sair de casa á noite e escapar á mais que previsível velha chata com quem vive. Um carro de polícia passa, devagar. Lá dentro dois polícias olham para nós demoradamente. Eu sou conhecido e com o dedo mando-os pró caralho. Sorriem. Aparentemente a gaja não os incomoda. Ignoram até a sua presença a avançam no seu gastar nocturno de dinheiro aos contribuintes. Filhos da puta, remato eu. Não fazem nada e ainda chulam as gajas que atacam por estas bandas. A tipa volta a pedir-me o isqueiro. Não disse mais nada até agora. Começo a suspeitar que é mais um larilas vestido de gaja, como tantos que deambulam por estas bandas. Outro cigarro. Logo á primeira o isqueiro funciona. De soslaio olho-a melhor. Nariz pequeno, mãos cuidadas, boas tetas. Já pouco tenho para dizer. O silêncio dela começa a irritar-me. Não sou curioso mas foda-se, se estive a falar, o mínimo que a tipa pode fazer é dizer alguma coisa. Começo a ficar nervoso e sem mais nada para dizer. Resolvo calar-me e apreciar o movimento de putas, paneleirios chulos, clientes e policias que, num frenesim, se movem pela avenida. E a puta que não fala. Anos atrás já lhe tinha metido o caralho na boca. Ainda ssim ao menos tava calada por ter a boca cheia. Mas esta merda agora tá mudada. Um gajo já nem pode bater nas putas ou obriga-las ao broche. Por um lado a polícia aparece logo e os chulos davam-me cabo do canastro, por outro lado o perigo da gaja me morder o marzápio era mais que presente. Levantei-me disse-lhe adeus. Então a tipa resolveu dizer-me obrigado. Que tinha sido uma noite agradável. Que há muito não tinha noite tão interessante. Se eu quisesse poderia ir no carro dela até sua casa continuar a conversa. Parei um pouco a pensar na proposta. Com um sorriso declinei o convite. A mim não há puta que me leve para casa. Ainda me recordava do que tinha acontecido ao João. Acedeu ao pedido de uma gaja para ir a casa dela e acabou na igreja, no banco a pedir dinheiro, num emprego e agora costuma passar aqui com uma trela no pescoço.

8 comentários:

Abraço-te disse...

Por vezes a "nossa" rotina é a "nossa" vida...ou será a "nossa" morte ?...

o desconhecido...

Abraço-te
JustMe

Chapa disse...

Excelente crónica, ao lê-la pareceu-me que te estava a ouvir. Quem sabe se no Alburrica ao fim da noite, à roda duns whiskys, ou à tarde no 1900 hoje abandonado, no tempo em que o tempo parecia que parava para nos ouvir falar das coisas da vida que ainda ignorávamos. Cabrão do tempo!

sagher disse...

just toda a vida a que nos condenaram e nos condenamos tem destas coisas.
Chapa meu velho e grande amigo (felizmente posso dizer isso) sempre fui mais amigo do alburrica, e por lá vivi os mais belos temps de minha eterna ignorancia, no tempo em que o tempo não existia e o amanhã era algo de tão longincuo que a malta o matava em longas, demoradas e belas tertúlias. Era o tempo do sonho.

. disse...

A noite nos oferece múltiplas possibilidades de visão,visão da vida, apesar do escuro,mas é nesse escuro que contemplamos cenas que não se vê a luz do dia, isso é uma das coisas que faz a noite ter muitos encantos.

bjos.

Maria Dias disse...

Oi Sagher...

Muito boa crônica além de divertida(achei a tua cara!rs...).Olha,tenho saudades viu?Nao sei se eu sumi ou foi vc,mas uma hora desta a gente acaba dando sorte e conversamos um pouco...

Beijo!

P.S. Adorei a imagem tb e a música...

Anónimo disse...

Gostei imenso da sua cronica, é realista, e fala da noite!... do tempo, esse malfadado, que é o tempo!...
De vez enquando,passo por aqui.
ana.

Anónimo disse...

você gosta de posar como anarca, mas revela-se nos seus textos (na poesia, lá consegue escapar algumas vezes) um gajo do mais convencional que há... malfodido, rancoroso, descarregando o desamor em cima das mulheres...
Lúcia

sagher disse...

amiga anónima Lúcia (o nome faz-me recordar a irmã Lúcia dos milagres de Fátima) gostei da sua provocação. Também gostaria de ver o seu blogue. em relação ao ser convencional, acho que tem razão. Sou um tipo conservador, basta ler o meu blogue, e não só um texto, para se chegar a essa conclusão. Os outros adjectivos, seria indecoroso estar a entrar em pormenores. Mas se um gajo tem de descarregar o desamôr vai ser em cima de quem se não das mulheres?
mas gostei principalmente do seu sotaque.